


"Pena Guarani" apresenta uma crítica ao Estado e à Igreja na marginalização dos verdadeiros donos desta terra
Assim como fez em toda sua trajetória artística, o tronco missioneiro Pedro Ortaça mais uma vez chama a atenção para a triste realidade dos verdadeiros donos desta terra, os índios guaranis. Em uma composição de Gabriel Ortaça, Pedro Ortaça e Vaine Darde, a mais nova obra lançada recentemente nas plataformas digitais, intitulada Pena Guarani, canta a história e as dificuldades do povo guarani e coloca o dedo na ferida causada pela ação e omissão do Estado e da Igreja junto aos descendentes de Sepé Tiaraju.
Conforme o premiado compositor e poeta gaúcho, Vaine Darde, que assina a obra com Pedro e Gabriel, "ninguém até hoje teve coragem de falar o que falamos nessa música: a verdade! Pois já vi em Porto Alegre, na frente da Igreja Santa Terezinha, uma índia vendendo balaio na frente da igreja e o padre fechando as portas para ela. E que bom que conseguimos cantar isso, a verdade que todo mundo enxerga, mas que todos ficam calados. Essa (música) vai ficar, vai mexer com a sociedade. Os índios estão atirados na calçada e ninguém estende a mão. Eles são os verdadeiros donos desta terra, a qual nós que tomamos deles e hoje ignoramos essa realidade", descreve o poeta sobre a música Pena Guarani.
Segundo Gabriel, a melodia teve sua composição iniciada há cerca de cinco anos, que inclusive já era para ter sido lançada antes da pandemia. No entanto, a composição foi finalizada recentemente, sendo composta em parceria com seu pai, Pedro, e o amigo Vaine Darde, o que deixou os versos cada vez mais se aproximando do real objetivo: mostrar a realidade sofrida dos índios. "Com oitenta anos, já vi, vivi e presenciei muita coisa errada. Os índios eram donos de tudo, e a ganância do branco acabou por retirar os direitos dos guaranis", explica Pedro Ortaça. A canção, inclusive, recebeu o acréscimo do som de um violino, instrumento até então inédito nas canções de Ortaça.
Uma marca da trajetória de Pedro Ortaça e sua família foi sempre ter defendido melhores condições de vida para os índios guaranis, da região missioneira. Além de cantar o seu sofrimento e a luta por dignidade, o músico sempre priorizou o auxílio aos verdadeiros donos do chão missioneiro: "Sempre que eu lançava algum disco, fazia com que a verba do lançamento fosse destinada para a comunidade guarani".
Muitos fatos marcantes em prol da comunidade guarani tiveram a marca registrada de Pedro, como quando os índios da aldeia em São Miguel das Missões foram se apresentar na Assembleia Legislativa, na capital gaúcha, onde foram arrecadadas mais de três toneladas de alimentos. "Eles foram aplaudidos com muito entusiasmo e, ao final do show, quando viram aquele monte de alimento arrecadado, não quiseram voltar para o hotel, mas acabaram dormindo junto às provisões doadas", explicou Pedro.
Outra ocasião em que Pedro defendeu os índios Guaranis foi quando levou a situação precária em que viviam ao governador do RS à época, Olívio Dutra, no final dos anos 1990. "Ele se compadeceu da situação da comunidade indígena e, juntamente com a Judite Dutra, primeira-dama, visitou conosco a aldeia onde puderam ver os índios dormindo em barracos de lona, em situação de miséria. Combinei com o Cacique de fazer o seu relato e um pedido de auxílio, ao que foi atendido pelo governador, que em pouco tempo, destinou 220 hectares da área para a propriedade da aldeia guarani", relembra Pedro.
A mão de Pedro Ortaça em prol da aldeia também ocorreu quando o músico se apresentou no Fórum Social Mundial, em Canoas, onde, em sua fala, denunciou a situação de miséria que os índios locais conviviam: "O Paulo Paim (Senador) estava lá e se emocionou quando ouviu o meu relato. Ele disse que enviaria R$ 120 mil para a aldeia, mas o dinheiro não era suficiente para a construção de um posto de saúde. Daí eu e o prefeito de São Miguel, Pedro Everling, assinamos um pedido para o Paim e ele mandou mais R$ 180 mil, que tornou possível a construção do posto de saúde da aldeia, que hoje presta atendimento médico e odontológico à comunidade", destacou Pedro.
A música Pena Guarani apresenta uma crítica direta à atuação da Igreja no papel de dizimação das comunidades indígenas à época: "Importante salientar que a igreja é algo material que foi criado. Jesus defendia os oprimidos assim, como Sepé tinha seu olhar para os semelhantes. O Papa Francisco recentemente pediu desculpa para as tribos norte-americanas pela perseguição e o extermínio dos indígenas que foi perpetrado no passado. E a própria história do Brasil ocorreu assim, com a dizimação dos povos com a marginalização dos índios e seus descendentes desde então. Assim, como o Pedro, o Cenair Maicá, o Noel Guarany e Jayme Caetano Braun fizeram desde o início de suas carreiras, sempre cantando, denunciando e opinando, a Pena Guarani mais uma vez levanta a bandeira de luta pelos nossos índios guaranis", finalizou Rose Ortaça.
Ah, se Sepé fosse vivo,
duvido tal abandono,
a razão teria dono
e o ideal seria ativo,
sem haver índio cativo
onde a miséria fareja
e uma revolta rasteja
a mendigar nas esquinas
jogada à maldita sina
de ser órfã da igreja!
Há uma pena Guarani
e uma dívida cruel
de quem ficou por aí
aquerenciado a lo léu.
Pois antes de vir a cruz
com as promessas cristãs...
Havia esperança e luz
sobre a guarda de Tupã.
O índio saiu da mata
pra se arranchar nas missões
e o que a história relata
não traduz as dimensões...
Pois liberdade e cultura
e até o jeito que se reze
não se impõe à criatura
com espada e catequese!
O que foi que sucedeu?
A igreja "nem tá aí"
pois nem na Casa de Deus
tem lugar pro Guarani.
Quem já foi dono de tudo
vive aos trancos e barrancos
sem ter acesso ao mundo
barbarizado dos brancos.
Que jogue a primeira pedra,
na selva bruta das ruas,
quem não paga com moedas...
A terra que não é sua!
Indago as autoridades,
aos que escrevem as leis,
aos ditadores e aos padres,
aos deuses e aos falsos reis:
Será que ninguém enxerga
o que se dá por aqui?
A humanidade está cega,
abre os olhos, Guarani!