


Por mais de três décadas, um crânio humano coberto parcialmente com faixas de tecido envelhecido ficou preservado numa caixa de vidro, no museu do Centro Cultural 25 de Julho, na cidade de Cerro Largo. Conhecida como a "Múmia de Cerro Largo", a peça não tinha comprovação científica, permanecia no armário coberto por uma cortina e era apresentada a alguns visitantes.
Neste mês, depois de um ano de pesquisas que envolveram até o exame para datação por radiocarbono (C14), realizado num laboratório nos Estados Unidos, veio a confirmação: o crânio pertenceu a uma mulher na faixa dos 40 anos, que viveu no Egito no período entre 768-476 antes de Cristo. A múmia autenticamente egípcia é uma das duas identificadas hoje no Brasil — a outra, chamada de Tothmea, está no Museu Egípcio e Rosa Cruz, em Curitiba (PR).
A descoberta foi realizada pelo pós-doutor em História, pesquisador e caçador de relíquias Édison Hüttner, também coordenador do Grupo de Estudo Identidades Afro-Egípcias da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Em junho de 2017, convidado pelo integrante do museu de Cerro Largo, historiador Guido Henz, ele conheceu o crânio e obteve autorização para uma investigação mais aprofundada. No ano passado, a peça foi levada para as dependências da PUCRS, em Porto Alegre.
Para legitimar a origem, o caçador de relíquias convidou estudiosos de diferentes áreas, entre eles, Moacir Elias Santos, arqueólogo especializado em Egito Antigo, coordenador do projeto Tothmea, no Museu Egípcio e Rosa Cruz, em Curitiba, e integrante do Museu de Arqueologia Ciro Flamarion Cardos, em Ponta Grossa (PR), e o cirurgião bucomaxilofacial Éder Hüttner, responsável pelo laudo que identificou nove dentes intactos no crânio — um deles serviu como base para os estudos de carbono 14. No primeiro exame de tomografia, realizado no Instituto do Cérebro da PUCRS, foi identificada a existência de um olho artificial feito com rocha. Por conta desta descoberta, o crânio passou a ser chamado de Iret-Neferet — em egípcio antigo, significa olho bonito.
"O olho é uma das partes muito bem trabalhadas nesta peça. Ainda há restos do linho utilizado para preencher o globo ocular e segurar o olho de pedra. Os egípcios acreditavam que o corpo precisava estar muito bem preservado para que a alma voltasse e o encontrasse novamente", relata Hüttner.
Mas como uma múmia foi parar na cidade de 14 mil habitantes, no interior gaúcho? Quem explica é Henz, voluntário cultural de Cerro Largo e integrante do Centro Cultural 25 de Julho. No início dos anos de 1950, o advogado Marcelino Kunz ganhou a peça de presente de um amigo egípcio, que estava com câncer e tinha os dias de vida contados.
Ao retornar para o Rio Grande do Sul, o advogado carregou o crânio para diferentes cidades onde morou. No final dos anos de 1970, Kunz decidiu doar a peça a Henz para ser incluída no catálogo de dois mil artigos existentes no local. O doador morreu no início dos anos 1980. Desde então, Iret-Neferet ficou reservada no museu de Cerro Largo.
Para Hüttner, o trabalho de identificação da múmia de Cerro Largo ainda não terminou. Neste momento, está em desenvolvimento uma análise de fungos no Instituto do Petróleo e Recursos Naturais da PUC/RS. Ele planeja também encaminhar uma amostra para estudos de sequência de DNA, a serem realizados na Alemanha.
"Imagino que só exista a cabeça porque transportar um corpo completo chamaria muito a atenção. Iret-Neferet surgiu nas esquinas da História e veio vindo, até chegar o momento de ser identificada. E foi agora", comemora o caçador de relíquias.