


Eu senti meu coração afundar quando Fim da Estrada fez a transição de suas gloriosas cenas diurnas, no deserto banhado de Sol do Meio-Oeste americano, para um clímax inteiramente noturno. Este é um suspense de baixo orçamento da Netflix, pensei, e é claro que o seu final se degradaria para uma bagunça de cenas incompreensíveis filmadas em iluminação "naturalista" (leia-se: escuras o bastante para esconder a precariedade da produção). Mas parece que me faltou confiança na diretora Millicent Shelton.
Quando a noite cai no deserto, Fim da Estrada liga as luzes neon. Saturada de um roxo realisticamente injustificável, a fotografia de Ed Wu é a evidência mais clara de que este é um thriller que não se priva de extrapolações e artificialidades, que se delicia com as possibilidades da realidade aumentada, à flor da pele, que está no próprio coração do gênero. Filmes como Fim da Estrada existem para caricaturizar medos e tensões reais, transformá-los em alegorias - e há muito tempo que não tínhamos uma produção que realmente entendesse isso.
O protagonismo aqui é da família Freeman, liderada pela corajosa, mas diplomática, enfermeira Brenda (Queen Latifah). Após a morte do marido, ela se vê incapaz de pagar as contas da casa e decide se mudar para o Texas com os filhos e o irmão, Reggie (Chris "Ludacris" Bridges). O caminho da Califórnia até a nova morada da família, no entanto, se mostra perigoso quando os Freeman testemunham um assassinato relacionado ao tráfico de drogas e passam a ser perseguidos e ameaçados pelo chefão do crime local.
A história é familiar, e não faz questão de esconder isso. David Loughery, veterano de thrillers do time-b de Hollywood, como Obsessiva e O Vizinho, conduz o roteiro através de todos os passos esperados e garante a base emocional sólida da jornada de Brenda e sua família se recuperando do luto. Já seu colega de script, o escritor de sitcoms Christopher J. Moore, fica responsável por trazer as pérolas de humor autoconsciente e a abordagem caricata, mas brutalmente eficiente, que o filme faz do componente racial da odisseia dos Freeman.
Enquanto isso, a diretora Shelton se preocupa em conduzir a sua equipe de bastidores na missão de potencializar o fator de entretenimento do texto. Além da fotografia vibrante que o eleva, Fim da Estrada tem uma edição espertíssima assinada por Tirsa Hackshaw, que abusa de transições brincalhonas e dinamiza com competência as cenas de ação meio tímidas do longa. Quando Queen Latifah dá porrada em um grupo de neonazis em um acampamento à beira da estrada, Fim da Estrada quer que você se divirta assistindo ao triunfo dela, muito mais do que fique ansioso pela periculosidade da situação.
Por falar nela, Latifah mostra-se mais uma vez uma camaleoa. De pioneira do rap feminista a vocalista de jazz, passando por atriz de musicais indicada ao Oscar, intérprete dramática indicada ao Emmy e estrela de comédias e sitcoms de sucesso, ela já foi de tudo - e fez tudo muito bem. Tanto com Fim da Estrada quanto com a série Sem Misericórdia, sucesso de audiência nos EUA, ela se transforma em heroína de ação carregando a mesma qualidade que a fez bem-sucedida em todas suas iterações anteriores: uma honestidade palpável na forma como elabora as emoções dentro de cada narrativa.
Brenda de Latifah é o coração desta confecção cinematográfica saborosa que nunca se leva inteiramente a sério, mas tampouco subestima o valor do que sabe que está fazendo muito bem. O thriller hollywoodiano sempre foi um palco fascinante para a dramatização e (em certa medida) satirização de nossas ansiedades, uma tela em branco na qual cineastas com visão podiam pintar quadros fascinantes em cor e movimento, e um palco importante para astros e estrelas mostrarem que conseguem segurar a atenção e a afeição do público.
Fim da Estrada, contrariando expectativas, é espetacularmente bem sucedido em todas essas frentes.
Nota do Crítico: Excelente!